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Afasia: Júlio queria falar, mas só conseguia dizer “sim” e “não”

Aos 68 anos, Júlio teve uma doença rara e grave que lhe afetou o cérebro. Ficou com lesões na área que processa a linguagem e deixou de conseguir comunicar. Quatro anos depois, já consegue contar a sua história.

27 Jun 2024 - 08:30

Afasia: Júlio queria falar, mas só conseguia dizer “sim” e “não”

Aos 68 anos, Júlio teve uma doença rara e grave que lhe afetou o cérebro. Ficou com lesões na área que processa a linguagem e deixou de conseguir comunicar. Quatro anos depois, já consegue contar a sua história.

Sílaba a sílaba, uma palavra de cada vez. O discurso de Júlio Cardoso, de 72 anos, é mais lento do que o normal, mas as frases que vai construindo para contar a sua história são estruturadas e percetíveis. Após descobrir um linfoma seguido por uma doença vírica rara que lhe afetou o cérebro, o diagnóstico de afasia – que significa a perda parcial ou total da capacidade de expressar ou compreender a linguagem falada ou escrita – surgiu como uma “surpresa desagradável”. Quatro anos depois, recuperou a fala, a escrita e já voltou às leituras. A propósito do mês para a consciencialização da afasia, que se assinala em junho, conta a sua história ao Viral.

“Não falava nada. Zero”

Faltavam seis meses para entrar na reforma quando Júlio foi diagnosticado com Leucoencefalopatia Multifocal Progressiva (LEMP), uma doença neurológica rara e grave causada pela reativação de um vírus num organismo imunocomprometido – no caso de Júlio, devido a um linfoma. Este vírus atacou-lhe as células cerebrais no hemisfério esquerdo, deixando-o com partes do corpo paralisadas e afasia.

“Não falava nada. Zero. Era só ‘sim’ ou ‘não’ e várias vezes me enganava. Quando queria dizer ‘sim’, saía ‘não’. Foi um período mais delicado”, lembra o antigo engenheiro.

Quem o ouve falar agora pode ter dificuldade em acreditar que, há pouco mais de quatro anos, Júlio só conseguia dizer duas palavras. No entanto, ainda há sinais da afasia: por vezes, no meio de uma frase, surge um termo mais difícil de dizer ou uma palavra trocada por outra. Os nervos e o stress não ajudam, confessa.

A afasia é uma perturbação da comunicação, que ocorre quando existem lesões cerebrais nas áreas neurológicas que processam a linguagem. Pode afetar a comunicação oral, a capacidade de compreensão e também a escrita e a leitura, dependendo da área e do tamanho da lesão.

É um episódio súbito em que o paciente deixa de conseguir encontrar as palavras que quer dizer. 

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As pessoas afásicas podem também trocar sons que sejam parecidos ou até enganarem-se na palavra que queriam dizer – por exemplo, em vez de “cão” dizer “iogurte”. Podem ter dificuldade em compreender frases mais complexas e, mesmo sendo capazes de entender o que leem, as competências escritas podem estar comprometidas.

Paula Valente, terapeuta da fala e presidente do Instituto Português da Afasia (IPA), explica que a afasia se trata de “uma alteração da comunicação por defeito linguístico do processamento do código da língua no computador central” – o cérebro – como se fosse um “curto-circuito” que faz com que o paciente deixe de conseguir usar palavras para se expressar. 

“Ter afasia é como, de repente, acordar num país estrangeiro. Eu tenho os meus conhecimentos, tenho a minha biblioteca de conceitos, mas eu não consigo dizer uma palavra naquela língua”, compara a presidente do IPA.

A principal causa da afasia é o acidente vascular cerebral (AVC), mas esta condição pode ocorrer também na sequência de tumores cerebrais, traumatismos cranioencefálicos, infeções bacterianas ou víricas ou outras lesões.

Estudos apontam que cerca de 30% sobreviventes de AVC tenham afasia aguda. Tendo em conta que, em média, três portugueses são vítimas de um AVC por hora, o IPA calcula que “surjam todos os anos cerca de oito mil casos novos” de afasia, com uma prevalência de pessoas com afasia estimada próxima de 40 mil.

Existe ainda a afasia progressiva primária, uma condição que resulta da demência frontotemporal (parte frontal do cérebro) – como a que tem o ator norte-americano Bruce Willis. Ao contrário da afasia súbita, a afasia progressiva primária resulta de uma doença degenerativa que irá ter impacto noutras capacidades do paciente, tais como a memória ou o movimento.

Diagnóstico, tratamento e a recuperação da fala 

A afasia é uma condição crónica para a maioria das pessoas. No entanto, em muitos casos, a terapia da fala pode ajudar os pacientes afásicos a recuperar a sua voz e comunicação. Júlio iniciou a terapia logo após o tratamento da LEMP. Como vive na Bélgica, a terapêutica era feita em francês e os resultados foram escassos. 

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“Estava muito desanimado, quando a minha mulher me falou do IPA. Então, decidimos tentar uma sessão sem compromisso porque eu não estava a acreditar”, conta o antigo engenheiro. “Foi aí que eu comecei a recuperar muito, agora já falo de mais”, acrescenta entre risos. 

Dois anos depois do diagnóstico, Júlio começou a realizar terapia por videochamada no IPA. Com os exercícios, recuperou a capacidade de comunicar na língua materna – o português – e também em outras línguas que falava anteriormente – como o francês e o inglês. Voltou a escrever e a ler, estando atualmente a meio do livro da Michelle Obama, em inglês.

“Eu vou preparar um texto para anunciar que tenho afasia ao meu amigo Manuel, do Porto, com quem vou almoçar, para o preparar. Ele não sabe que eu tenho afasia”, partilha. 

Júlio integrou também grupos de apoio e convívio de que o instituto dispõe para que os doentes afásicos possam partilhar experiências e conviverem. Quando vem a Portugal, aproveita para combinar almoços de convívio e participar noutras atividades com o IPA.

Paula Valente explica que a missão do IPA é “melhorar a qualidade de vida e bem-estar das pessoas com afasia e familiares”, promovendo também iniciativas para criar “um mundo sem barreiras para as pessoas com afasia”.

Ao nível dos tratamentos, o IPA oferece sessões de terapia da fala, psicologia e neuropsicologia para o paciente e para os familiares/cuidadores, assim como sessões de treino de comunicação e apoio psicológico e de psicoeducação. A terapêutica pode ser realizada no instituto, em consultas ao domicílio e por teleterapia. 

O IPA organiza ainda diversas iniciativas e atividades de convívio que “têm um cariz de ajuda mútua” e promovem “o encontro entre eles” para que saibam “que não estão sozinhos”.

O combate ao isolamento em pessoas afásicas é também um dos objetivos do IPA, prevenindo situações de depressão entre os pacientes. A vergonha e o estigma associados aos problemas de comunicação podem levar a pessoa a evitar situações públicas.

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Segundo um estudo realizado em Portugal, 76% dos indivíduos com afasia crónica apresentam sintomas de depressão muito evidente. Brígida Patrício e Maria Emília Santos, autoras do artigo, destacam que estes dados “corroboram a necessidade de terapêutica adequada para estes indivíduos relativamente às alterações do humor”.

Viver com afasia: a falta de respostas no apoio aos pacientes

O tratamento e a recuperação são a primeira fase de ação perante um diagnóstico de afasia. Mas, sendo uma condição crónica, é preciso também fazer com que o paciente “aprenda a viver com afasia”, explica Paula Valente.

A presidente do IPA reconhece que há “uma boa resposta na fase aguda”, com “boas respostas hospitalares, cuidados continuados e início da reabilitação”, mas alerta para a falta de apoio aos pacientes afásicos ao longo da vida.

“O problema são as fases seguintes, em que a pessoa chega a casa e se depara com a vida que mudou, em que a família se depara com uma série de dúvidas”, afirma.

Na maioria dos diagnósticos de afasia, o processo é semelhante: primeiro baixa médica, depois a reforma por invalidez. Contudo, Paula Valente lembra que “a afasia pode afetar qualquer pessoa, em qualquer idade” e que, depois do tratamento adequado, “muitos podiam continuar a trabalhar”.

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“Há muitas pessoas – que nós conhecemos no IPA – que estão na reforma porque não lhes foi dada nenhuma alternativa, porque a comunidade não tinha nenhuma resposta. Nós conhecemo-las, sabemos que têm imensas competências.”

Um dos objetivos do IPA é trabalhar com a comunidade para a tornar parte da solução. Para tal, realiza iniciativas de sensibilização para a afasia e promove formação a profissionais de saúde e da área social. Além disso, disponibiliza também recurso de informação “fidedigna e cientificamente correta” para ajudar as pessoas a tomarem decisões.

“Os tratamentos têm sido muito focados em tentar tirar a afasia às pessoas, só que, infelizmente, não conseguimos fazer isso na totalidade. É preciso capacitar as pessoas para viverem com afasia e capacitar a comunidade para aceitar a reintrodução destas pessoas com esta característica específica”, remata a presidente.

27 Jun 2024 - 08:30

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